domingo, 16 de outubro de 2011

LEVE POESIA

Das Chamas e seu Destino

Se a chama não quer arder,
não cumpre seu papel.
Uma chama que se deixa apagar
não merece virar cinzas;
seria um destino muito rico
para quem se recusa.
Talvez nem mesmo desaparecer
uma chama assim mereça.

Insatisfação

Você é tudo
que eu gostaria de ser,
e me pergunto:
será que você
é tudo que você
gostaria de ser?

Justificativa

Matei. 
Dor extrema 
exige cura extrema.

Teima

Minha teima é antiga. 
Quase não teimo com os outros. 
Minha teima é comigo. 

Teimo comigo desde que me lembro. 
Teimo com o fracasso,
com a preguiça, 
com o obstáculo, 
com a improbabilidade. 

Já teimei - e muito - 
quando não devia. 
À medida que o tempo passa (creio)
escolho melhor as teimas. 

Teimar é o que sei. 
Vivo a teimar.
Teimo em viver.

Fatídico

De algum lugar em mim 
vem o medo, 
a idéia 
e a pretensão. 

De algum lugar em mim 
vem a preguiça, 
a solução 
e a vontade. 

De algum lugar em mim 
virei e morrerei.

Não agora

Quero morrer feliz.
Não posso morrer agora.
Há tanta coisa guardada
no peito que ainda não gritou
como um dia há de gritar.
Não posso morrer agora,
justamente no momento
em que mais quero morrer.

Mesmice

Amanhã é um novo dia.

Mas o dia de hoje é velho.
Velho conhecido,
velho demais,
longe demais da vida,
perto demais do nada.

Amanhã é um novo nada.

Tristeza natural

Odeio ver minha imagem no espelho. 
Eu queria ter o atributo 
de caminhar por aí sem me ver 
duplicado, triplicado, caricaturizado.

Dois de Novembro

Quando eras vivo, 
não me preenchias.

Primeiro de Maio

Estou proletariamente cansado.

Etapa

Missão cumprida?
Comprida.

Absurdo

O ar está parado.
Assim como eu.

O ar não vê minha agitação.
Nem eu a dele.

Eu e o ar somos iguais.
Cegos, sem nos conhecermos.

Autoajuda

Preciso me usar. 
Preciso ser um parasita 
em mim mesmo 
para de mim extrair 
todas as possibilidades 
e sugar outras jamais imaginadas. 

Torna-se imperioso 
eu me consumir por inteiro, 
até o ponto em que terei 
de me adaptar, 
para que continue me saciando. 

Preciso revirar minhas entranhas 
para beber de mim 
enquanto mergulho em mim, 
numa infindável e voraz exploração.

Júbilo

Privilégio: 
posso ser feliz 
apesar de ninguém. 

Aprendi: 
posso ser feliz 
apesar de ti. 

Finalmente: 
posso ser feliz 
apesar de mim.

Certeza única

Um dia desses 
vou morrer 
de indecisão.

Uno

Além de um 
otimista incurável, 
sou um pessimista 
sem cura.

Duelo

O peso das pálpebras
só não deve ser maior
que o peso da consciência.

Um conflito de gigantes
em mim se instala:
o peso das pálpebras
quer que eu durma;
o peso da consciência
me atrapalha dormir.

(Id)Entidade

A partir de agora 
sou Fernando Pessoa.

Declaração de Dependência

Sou o que vou descobrindo de mim. 
Sou os outros. 
Um gesto que faço, 
uma palavra que escolho, 
uma inflexão. 
Sou os outros, 
e não sou qualquer um.

Sou aqueles que me sensibilizam. 
Quando não sou sensibilizado, 
não sou ninguém. 

Sou o que meu corpo é. 
Sou meu corpo. 
Por isso sou triste, 
sou cansaço, 
sou desistência. 
E serei morte.

Entrelace

Quero 
uma sensatez 
emocionante.

Vaticínio

Hei de.

Comparação

Devíamos ser 
como a luz da vela: 
seu brilho não ofusca, 
e quando vem a escuridão, 
sua chama é realçada.

Matemática

Não divido alegria. 
Divisão implica repartição. 
Transfiro alegria, 
transpiro alegria, 
transporto alegria. 
Não divido alegria. 
Multiplico-a.

Praia

Eu rio para o mar. 
Eu, rio para o mar. 
Extasiado, 
sorrio para o mar, 
sou rio para o mar.

Dependência

O caminho de minha felicidade 
passa pelo meu corpo. 
Nem sei se ela vai além. 

O caminho de minha felicidade 
depende de meu corpo. 
Seja eu feliz ao dizer algo 
ou ao tocar um instrumento, 
estará meu corpo sendo feliz. 

A audição capta uma felicidade, 
posso gozar outra. 
Incorporo a felicidade. 
De que outra forma eu poderia ser feliz?

Na Pele

Quando minha felicidade 
for suprema, 
quem vai anunciá-la 
para o mundo 
não será minha voz: 
serão meus poros.

Versátil

Sou 
o que me pede
cada instante.

Maníaco

Longas foram as viagens. 

Continuo chegando a meus destinos, 
e a saudade continua sendo grande. 

Saudade dos ônibus.

A Ponte

O Sol que nos aquece
encontra muitos de nós sob as pontes
(a ponte é para todos).

A chuva que cai
encontra muitos de nós sem telhado
(então procuremos a ponte).

A ponte, feita para todos,
há muito deixou de ser apenas travessia
(a ponte é lar, teto e ponte).

Etilismo

Um bêbado amanheceu 
deitado na calçada. 
Ali, ele dorme em paz.

Minha Cidade

Minha cidade não é 
pior nem melhor 
que outras cidades. 
É simplesmente uma cidade. 
É única, igual a todas. 

Ela tem 
o pior e o melhor, 
o rico e o pobre, 
o branco e o preto, 
a direita e a esquerda. 

Ela não os une, 
mas os tem. 
Assim como todas as cidades.

Caderno escolar

Em páginas que tão bem conheço
dia após dia deixo impressa minha caligrafia.
O caderno escolar que carrego
carrega em suas páginas minha estética,
anotações pessoais e diversas culturas mais.
Companheiro prestativo, fonte de estudos, material para arquivo.
É meu caderno escolar e suas matérias,
impregnado do que me foi ensinado;
encontro de inteligências que se foram
e suas contribuições,
encontro de inteligências atuais
e  suas evoluções.
Exala de cada página
o cheiro da capacidade humana e,
quando o fecho,
protege a capa um pedaço personalizado
das variadas imensidões do conhecimento.

Manuscrito

Sua caligrafia,
a quem
não soubesse ler,
ainda assim encantaria,
porque nesse caso
ela seria vista
como um belo desenho
abrilhantando o papel.

Transubstanciação

Vi um homem 
declamando poesias 
em cima de uma árvore. 

Os versos bateram asas, 
viajaram pelo espaço 
e pousaram num galho, 
assumindo forma de coruja. 

Feliz ela, 
que vê todos os lados da noite. 
Feliz ele, 
que tem asas na imaginação.

Resistência

A morte já se engraçou 
com meu avô várias vezes. 
Seu corpo incha, 
suas feridas se exaltam, 
seus pulmões se cansam, 
seu coração pára para pensar. 
E ele não morre. 

Há anos a morte 
tem flertado com meu avô, 
que ainda resiste, 
embora fragilizado, 
cansado, 
gemente. 

Nessa madrugada, 
pensei que os dois 
chegariam a um acordo. 
Engano. 
Foi só amanhecer 
e o Sol bateu forte em seu peito.

A Pipa

Solitária
e sem comando,
a pipa
nos fios da rede elétrica.

Não voa;
não está livre.
E quando
lhe deram corda, estava?

Nova Onda

Antenas apontam para o céu
em busca do deus da comunicação.
Somos receptores do mundo.

Antenas apontam para o céu;
fazem do satélite
o centro das atenções.
A paisagem urbana tornou-se parabólica.

Nas Pontas dos Dedos

No computador,
na máquina de datilografia,
no piano obediente.

Mas o que mais
me chama a atenção
nesse mundo de teclas
é a habilidade dos dedos.

Coisas do Futebol

A bola chutada
para o fundo da rede
foi bater bem
fundo no coração.

Audição

Nada tão barulhento
quanto o tic-tac
do relógio
no silêncio da madrugada.

Castanhos

Os olhos 
verificando a si mesmos 
no espelho: 
metalinguagem do olhar.

Por trás do Sorriso

Diz-se indecifrável,
quando se refere
ao sorriso da Monalisa.
Dito assim,
até parece
que os demais sorrisos
são facilmente decifráveis.

Diversão

Aprenda se divertindo.
Aprenda-se divertindo.

Paradoxo

Sinto-me
como um peixe
fora d'água
quando nela estou.

Baixos Teores

A cigarra traz seu canto. 
O cigarro, o leva.

Ponto de Vista

Vistas no pasto,
de longe,
as vacas parecem
tão imóveis quanto
suas companheiras no presépio.

Lição

Cão latente morde.

Justaposição

Couve, 
és uma flor.

Olhos de Borboleta

Passou por aqui 
uma borboleta 
que tinha 
olhos nas asas. 
Olhou-me, 
não sem reparar 
na falta de graça 
dos olhos na cara.

Melhor é possível

O que hoje sou
não faz de mim
outro do que fui.
Sou hoje o mesmo,
só que melhorado.
O ter melhorado
não me torna outro.
O diamante lapidado
vale mais não porque
deixou de ser diamante,
mas porque foi lapidado.
E mais: o melhor neste dia
não é saber o quanto
sou melhor e maior,
mas a noção do quanto
posso ser ainda
maior e melhor.

Um

Tal
Tao
tão
são
não
é
em
vão.

Um
ser
de
vir
tal
qual
o
Sol,
tal
qual
o
Tao.

Bom
ou
cá.
Luz
sem
fim
em
mim
e
em
ti.

Moderno

Não me iludo mais. 
O mundo é um museu. 
Está cheio de coisas velhas 
que não estão nos livros. 

Não me iludo mais. 
O mundo é um museu. 
E quem não se volta para o passado 
está ultrapassado.

Trindade

Sem grana,
sem gana,
sem Ana.

A grana acabou,
a gana se rendeu
e Ana viajou.

Cítrica Lição

Para que o sabor da laranja
seja apreciado,
temos de conviver
com a casca e com as sementes.
É a laranja ofertando-nos,
além de suas delícias,
uma metáfora,
conselho útil para que aprendamos
a saber das essências das coisas.

Caminhos do Vento

Ir conforme
o vento não é caminho
ruim de se seguir.
O problema
é que nos falta sabedoria:
vamos conforme muita coisa,
mas quase nunca conforme o vento.

Mar em comum

As águas
que meus pés
agora tocam
são as mesmas
nas quais você mergulha.
Por isso digo
que entre nós
há um oceano que nos une.

Musicalidade

O céu num dia de sol
bem pode fazer surgir
uma canção em sol,
maior ou menor,
ou mesmo em lá, aqui ou acolá.
Tanto faz.
O que importa
é cantar em si um dia de sol.

Reticências

Uma palavra 
precisa de outra, 
que precisa de outra... 

Um torcedor 
precisa de outro, 
que precisa de outro... 

Uma voz 
precisa de outra, 
que precisa de outra... 

Toda pele que arrepia 
se pontua com reticências.

Deus

Deus abstraiu-se. 
Deus concretizou-se. 
Não necessariamente nessa ordem. 
Não necessariamente um após o outro.

Asa branca

Chovia. 
Gotejava... 
Plac... Plac... 
Plac... Plac... 

Percebi que as gotas 
serviriam
para um compasso binário. 

Lancei mão do violão 
para valer-me da "Asa Branca". 
Quando veio o estio 
ela bateu asas. 
Foi fazer chover no sertão.

Recado

Saí para abraçar 
a Irmã Chuva. 
A quem perguntar, 
diga que não sei 
quando voltarei. 
Diga apenas 
que voltarei 
de alma limpa.

Natural

Vastidão nas montanhas. 
Vastidão no céu. 
Vastidão no mar. 

É imprescindível tornar-me vasto.

Pássaros que Somos

A cada vôo
de pássaro
que presencio
mais e mais me convenço
de que o amor a eles
não se revela
por meio de seu aprisionamento.

Quem quiser para si
um amor de pássaro,
comece por abrir
gaiolas.

Poema alado

Li que os pássaros
vêem o mundo
mais colorido do que ele já o é.
Os pássaros voam
e não sabem da maravilha
que é poder voar.

Se eu pudesse ser pássaro por um dia,
será que me conformaria
em não ser pássaro
no restante de meus dias?

Para fazer Voar

Eu vi uma revoada de pássaros
voando em perfeita simetria
num final de tarde
de um céu azulzinho.

Eu vi um menino mostrando
ao motorista que o levava
os mesmos pássaros que
voavam em simetria.

Eu quis muito ter mão de desenhista
ou de pintor para que você visse
a beleza que foi mirar no céu azul
o vôo simétrico dos pássaros.

Amálgama

Há um momento tal 
em que o céu não está 
nem de noite 
nem de dia. 
Dia e noite se acham. 
O momento é breve, 
mas se acham. 
Acham-se todos os dias. 
Se misturam.
Amálgama celeste: 
de um lado é meio dia, 
do outro é meio noite. 
Simetria celestial: 
espécie de yin-yang. 
Simetria global: 
meio-dia daqui, 
meia-noite de lá. 
Meio claro, 
meio escuro. 
Ora dia, ora noite. 
Oração.

Espreita

Não estou sozinho em minha casa. 
Existem seres discretos vivendo em segredo. 
Perfuram paredes, fazem teias; 
estão nos cantos, nos recônditos. 
Alguns pertencem ao reino da escuridão; 
quando adormeço, 
sentem-se à vontade 
para sobreviver em paz. 
Não os vejo; 
sei que são muitos, 
sei que fazem festa. 
Não estou sozinho em minha casa. 
Sou a morada de outros seres.

Quando é Noite

Quando é noite, 
sou conhecedor das madrugadas 
e ouvidor dos galos que as anunciam. 

Quando é noite, 
sou invasor das madrugadas 
e perscrutador do que há em mim. 

Quando é noite, 
sou amador das madrugadas 
e realizador dos sonhos que nos compõem.

Em Português claro

Para haver desempenho,
muito empenho;
para haver desencontro,
basta um só encontro.

Ausências

A ausência que agora sinto
se faz em três:
há a ausência sua aqui,
a ausência minha aí
e a ausência nossa em nossos lugares.

Outrora nunca poderia imaginar
que a ausência tivesse divisões.
O que só crescia
não podia ser assim decomposto
de forma tão ligeira e inesperada.

Herdeiro de ausências,
distraio-me, tentando compor assim
o esquecimento.
Ainda atordoado,
pressinto um sentimento
que o passar dos anos
talvez não aniquile.

Fachada

Repara: 
minhas feições, 
fortaleza. 

Não saberás 
que teu descaso 
me anulou.

Triângulo amoroso

Deve-se urgentemente
buscar um substituto
para a corriqueira expressão
triângulo amoroso,
que de amoroso
pouco tem.

Pensei e descobri
haver um triângulo amoroso
sem mentira nem mágoa:
o vital encontro de terra, semente e água.

Desabafo

Não dá mais para calar. 
Descobre o que sinto 
ao te amar todos os dias. 
Põe tua mão em meu coração.

Do Amor

Amor é meio sim, 
meio não. 
E é talvez, 
contudo, mas, 
apesar de 
e finalmente. 
Ruim é 
quando é nunca.

Ora Bolas

Aqui, neste momento, juntos. 
A Lua que olho, 
a mesma que olhas. 
De nada vale isso. 
Penso em ti, pensas nele. 
Antes uma noite nublada 
em que nos pensássemos.

O Telefone

De um lado
da cidade meu coração
inventa esperanças.
Toca o telefone,
corro para atendê-lo.
Desventura: não é sua voz do
outro lado da cidade.

Dúvida

Meu amor,
eu te amo?

Cafajeste

Casamento e amante.
Uma outra não impede a coisa.

Vitoriosa

É madrugada. 
Penso nela, 
que deve estar dormindo. 
Dorme uma vitoriosa. 

Quando se deitou, 
recebeu a cama uma vitoriosa. 
À medida que o sono ia vindo, 
fazia adormecer uma vitoriosa. 
Quando finalmente veio, 
fez dormir uma vitoriosa, 
que o recebeu com um leve sorriso, 
sorriso de vitoriosa, 
que vai acordar vitoriosa, 
porque quis ser vitoriosa, 
porque sonhou-se vitoriosa e vitoriosa é.

Poeminha no Cartão

Sim,
querida,
é verdade.
Não nascemos
um para o outro:
renascemos.

Um ao Outro

Ele embelezou-se para ela, 
que se embelezou para ele. 
Saíram de casa gostando mais de si. 
Voltaram gostando mais um do outro.

Trânsito

Caminho.

Ela passa num carro,
pára no sinal.

Nossos olhares fazem cintilar
o retrovisor.

Convite

Se o acaso 
quiser nosso encontro, 
brindemos ao acaso. 
Ou por acaso. 
O que importa é celebrar. 

Se você e eu 
inventarmos nosso encontro, 
brindemos a nós. 
Ou a sós. 
O que importa somos nós.

Become

“You are what you know”. 
Let’s know each other.

Mutação

E a carne se faz verbo.
Precisamente, verso.

Quando duas carnes se tocam,
grande o poder que delas emana,
grande a energia adquirida expelida.
Quando duas carnes se querem,
um canibalismo carregado de eufemismos
atua reciprocamente.
Enlace, entrelace, busca, gozo.

E a carne se fez verbo
e habitou entre mim e ti.

Receita

Sua roupa contente
escondendo o bastante
e mostrando o suficiente.
Receita ideal e sensual
de um corpo
essencial e natural.
Com tamanha receita,
foi só questão de tempo
para que os tecidos
que separavam nossas peles
se tornassem coisas do chão.

Trinta Dias

Daqui a um mês, serei teu presente. 
Ainda que não seja para sempre, 
serei teu presente. 
Por um dia, definido: 
serei teu presente. 

Mas não sou daqueles 
que se contentam em 
regozijar-se por um dia. 
Um dia é pouco, 
muito pouco, 
pior do que nada. 
Entre o nada e um dia, 
prefiro todos os dias, 
sem término programado, 
sem promessas já pensadas. 

Serei teu. 
Daqui a um mês em diante.

O Mar de Márcia

Há mar se há Márcia.
Se Márcia
vai para o mar,
corro para amar,
corro para a Márcia.

Márcia vem do mar,
e no mar de Márcia
quero mergulhar
em seu azul
olhar para o mar azul.

A Márcia aprende amando.
Há mar. Amar.
A Márcia.

Namorada

Namorada minha,
seu coração mora no meu.
Morada minha,
meu coração mora no seu.

Morada minha,
seu coração namora no meu.
Namorada minha,
meu coração namora no seu.

Quem me Dera

“If I could write the beauty of your eyes
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say ‘This poet lies;
Such heavenly touches ne’er touched earthly faces’”.

William Shakespeare

Tu és linda demais.
Penso nisso todos os dias, 
todas as vezes em que te vejo. 

Uma certa tristeza 
toma conta de mim 
quando te vejo: 
eu não toquei tua beleza. 
Um certo elã 
toma conta de mim 
quando te vejo: 
eu não toquei, ainda, 
tua beleza. 

A vida te tem trazido 
sempre com hora marcada. 
Quem me dera, 
numa dessas esquinas, 
ela pudesse te trazer livre 
e querendo saber quem sou. 

O viço de teus cabelos, 
a lisura de tua pele, 
a carnalidade de teus lábios. 

O tempo vai levar tudo isso. 
Mas eu não deixo de amar 
meus livros por que o tempo 
está amarelecendo suas páginas. 
Sei o que são releituras.

Crítica

Tentei os melhores versos 
já feitos e escrevi um poema 
para a mulher mais linda do mundo. 

Só eu sei o que foi 
ficar um ano 
criando coragem 
para o entregar a ela, 
que agora evita me olhar. 

É melhor parar de escrever.

Mão boba

O vento
que levanta
a saia
da esbelta
donzela
faz graciosamente
o que eu gostaria
de fazer manualmente.

Roupagem

O calor 
põe vestido 
nas mulheres 
e me reveste 
de investidas.

Potencial

Olho toda a ninfeta.
Latente em seu corpo,
que mulher antevejo.

Tensão

O sempre
é o sim infinito.

O não infinito
é o nunca.

A ansiedade sem fim
é causada pelo talvez.

Bastar

Não precisa 
um não inteiro. 
Meio não, para mim,
é nunca.

De que Vale?

Gostas em mim do que não se vê. 
Para ti, sou sensível, inteligente, 
mas não há como pegar 
na inteligência nem na sensibilidade. 
Admiras em mim 
o que não se tem nos braços. 

Tu me admiras, é certo, 
mas na hora de abraçar alguém, 
dele é o abraço, 
pois dele é o corpo que admiras. 
Dele, que até julgas tosco.

Em mim, queres o espírito; 
nele, o corpo. 
Pudesse eu escolher, 
ele seria eu, 
para que assim 
fosse meu o abraço.

Doentio

Meu coração 
fica feio 
quando te vejo bela 
e sei que não é para mim.

João Guimarães Rosa

Se soubessem as rosas
o que exala de Guimarães, 
ficariam surpresas com sua essência.

Uma rosa não nasce igual a outra.
Mas são rosas,
podem ter até a mesma cor.
Em Guimarães é assim:
a mesma palavra floresce
cada vez diferente.

Plantar e replantar a palavra,
para colher a palavra sempre nova,
sempre palavra.
Ofício desse jardineiro
que tinha o simples nome de João.

Drummond

Poesia. 
Substantivo feminino. 
Já teve como propriedade 
fazer de Drummond 
o que bem entendesse.

Rimbaud

Rimbaud: 
tão jovem, 
tão poeta. 
Deixou-me com a impressão 
de que a poesia 
ama a juventude. 
Deixou-me com a certeza 
de que a juventude 
tem de ser poética.

Jorge Luis Borges

1
Será que existe alguma palavra inútil? 

Enquanto eu me fazia essa pergunta, 
enquanto refletia na possibilidade ou não 
da inutilidade de alguma palavra, 
lembrei-me de Borges, 
que já me dera a resposta: 
“Cada palavra é uma obra poética”.

2
Há um verso de Borges 
em que ele diz 
estarem suas noites cheias de Virgílio. 

Minhas noites estão cheias de Borges. 
De tigres, 
de espelhos, 
de perplexidades, 
de sonhos, 
de versículos. 

Parafraseio um trecho seu: 
Como todas as coisas, 
o destino de Jorge Luis Borges 
parece-nos um símbolo 
de algo que estamos 
a ponto de compreender.

3
Pois é, 
caro Borges, 
sobreviveste. 
Foste mais forte 
do que os tigres 
que amaste.

Poesia de Criança

A arte é bela;
é por isso que não fico sem ela.

A arte é bela;
é por isso que tanto gosto dela.

A arte é bela;
é por isso que não me sinto numa cela.

A arte é bela;
é feita para o Carlos ou para a Anabela.

Apontamento

Estou feliz,
embora coberto de verrugas.
A culpa é do céu,
que está coberto de estrelas.

O Livro em mim

Preciso aprender
a ler em mim,
aprender a ler-me.

Aprender a ler-me
será meu leme,
e se a mim mesmo não leio,
será possibilidade remota
o ato de escrever-me.

Garimpo

1
Pulsa
em mim
um poema.

Palpita
em mim
um poema.

Sei que ele virá.
Veio.

Pepita
em mim
um poema.

Diamante-se
comigo como
num poema.

2
Pulsa
em mim
outro poema.

Palpita
em mim
outro poema.

Pepita
em mim,
inquieto,
outro poema.

Diamante:
em mim,
outro poema.

Fartura

Apanho o dicionário
para acabar com uma dúvida.
Enquanto folheio suas páginas
outras palavras me atraem.
Qual era mesmo a que eu queria?

O Papel da Poesia

A vastidão da poesia
cabe no papel.
O papel é levado
afora pelo mundo.
O mundo é grande
e cabe no papel.

O papel é pequeno
mas comporta a poesia.
A poesia é levada
afora pelo mundo.
O mundo gira, gira
e se faz poesia.

Outras Poesias

O engendrar da poesia 
pode ser poético. 

Poética pode ser 
a leitura. 

O papel não é 
a única morada da poesia.

Página em branco

A alva página
do sulfite
é convite
e não deixa
de ser também açoite.

Porque
na página alva
a alma se tortura
e faz do verso o alvo.

Se o atinge,
sorri para si mesma
na alvura de si
e do sulfite.

Poética do Barulho

Escrevo de madrugada,
e o silêncio dessa hora
me permite ouvir
o som da caneta
a deslizar sobre a branca página.
Então descubro:
poesia faz barulho.

Coisa do Lixo

O que é feito das palavras
que vão para o lixo?
Ficam em algum lugar de nós
ou não passam de lixo?
São recicladas?
São catadas por um outro
procurador de palavras?
Se assim for,
quais palavras terei colhido no lixo?

Decifração

Após ler, 
durmo. 
Ao dormir, sonho. 
Ao sonhar, 
escrevo-me. 
Ao acordar, 
tento ler-me.

Crescimento

Tanto tempo se passou 
e estou aqui, 
relendo Drummond. 
Enquanto o releio, 
releio-me.

Procura-se um Verso

Perdi um verso!

No bolso, 
pouco dinheiro, 
alguns números de telefone, 
um endereço ou outro, 
dois cartões telefônicos. 

Com o bolso abarrotado de coisas 
que eu poderia facilmente rever, 
perdi justamente um verso. 

Já revirei todos os bolsos,
vasculhei as gavetas, 
redesarranjei a escrivaninha. 
Nem a memória trouxe o verso
que caiu do bolso. 

Se ninguém encontrá-lo,
não resistirá, é certo, 
pois ainda que fosse o verso 
um daqueles que não perecem jamais, 
sabe-se que mesmo o mais belo dos versos, 
para que continue renascendo, 
necessita de cuidado, de papel, de ser lido. 

Um verso assim,
discretamente passeando por aí, 
pode ser encontrado - 
pelo vento, pelo esgoto, pela chuva. 

Era um papel,
branco, dobrado. 
Continha um verso.

Gerúndio

Amanda, 
está claro, 
é o gerúndio 
do verbo amar, 
no feminino. 

Fernando, 
está obvio, 
é o gerúndio 
do verbo fernar. 

E numa dessas ironias 
da gramática, 
Fernanda está Amando.

Três Vezes

Num momento 
em que me cercava de
livros, livros, livros, 
li que Gertrud Stein 
foi quem disse 
"uma rosa é uma rosa é uma rosa"... 

Lembrei-me então de Hamlet, 
que respondeu a Polônio 
"palavras, palavras, palavras". 

Fiquei o resto do dia 
cercado de 
poesia, poesia, poesia.

O Reverso do Verso

Procurei antes, 
durante e depois. 
Procurei até em mim. 

Investiguei as estrelas, 
mergulhei no mar 
e escalei montanhas. 

Perscrutei seus olhos, 
olhei em minha boca 
e embaixo da cama. 

Muito cansei e, 
quando descansado eu já estava, 
a verdade descobri: 

o verso está 
do outro lado 
da página, 

o verso é 
o outro lado 
da página. 

O verso é o outro lado, 
e quando se olha para este, 
do outro lado há verso.

Labuta

Grão é cada palavra. 
Em mim plantei 
lavoura variada. 
Grãos do mundo inteiro consegui. 

Guardei silêncio. 
Do céu, veio a água. 
Atento, calmamente aguardei. 

Rompeu-se a terra. 
A palavra despertou. 
Cuidadoso, tranqüilamente a incentivei. 

De planta em planta 
a lavoura vai se compondo. 
Antes, aridez; agora, colheita. 

Apanho no pé  fruta fresquinha. 
Ordeno-as num balaio. 
É hora do replantio.

O Tempo e o Verso

Nasci.
Cresci.

Entre um verso e outro, 
muitos versos e outras vidas. 

Nasci. Cresci. 

E o verso, 
lido num átimo, 
encerra uma vida. 

Nasci. 
Cresci. 
Em meu último verso, 
morrerei.

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